Solidão - Alícia

A noite tinha sido deveras absurda, eram informações demais sendo jogadas na mesa e talvez tempo e tranquilidade de menos para absorve-las ou compreende-las, pior, eram morais sendo questionados o bastante para saber no que acreditar ou não.

Alícia tinha vindo entregar uma encomenda, uma missão simples, mas em circunstâncias completamente surreais, e aquilo tinha tornado-se mais difícil do que esperara. Onde estava se metendo afinal?

A noite estrelada e a lua cheia alta no céu compunham aquele cenário mágico, a brisa gelada a fizeram cruzar os braços para tentar não tremer de frio, afinal, o que ela estava fazendo ali?

De repente ela sente algo em suas pernas a roçar, e um par de misteriosos olhos felinos a encaram, novamente.

Alícia dá um suspiro. Havia se envolvido com as pessoas e o festival e sua missão acabara ficando de lado. Ela olha para o gato em seus pés e dá de ombros.

- Aff... Tá bom. Mas vê se fica quieto hein, ou vou te empurrar do telhado. - Ela fala brincando, mas meio séria.

Alícia coloca o capuz e se dirige até um canto pouco iluminado mas com boa visão. Procura uma forma de subir no telhado sem chamar atenção. O telhado era o melhor lugar para ver a cidade e pensar no que ia fazer. Não queria voltar para a festa.

Alícia achava que Lorde Ildor podia ter algo a ver com estes ataques. E poderia também ser um alvo, o que era um problema para ela.

A garota com cuidado e astúcia vai achando espaços e escalando a parede até subir a sacada do segundo andar, e dali, ve a beleza noturna da cidade. Luzes e mais luzes clareando pontos diversos em casebres, mansões e palacetes.

É perceptível que alguns pontos mais iluminados poderiam ser associados com outras tavernas, ou mesmo a casa de algum nobre que decidira dar a própria festa, será que alguma delas seria a de ildor, e como ela conseguiria chegar até ele? Alguém poderia ajudar?

Alícia sentava no parapeito da sacada, balançando as pernas enquanto brincava com Smeagle, seu rato gordo. Ele estava agitado com a presença do gato, mas era muito gordo e preguiçoso pra fugir.

Alícia olha para cima vendo as janelas que davam para os quartos. Era muito tentador... Um pezinho aqui, outro ali... Todos aproveitavam a festa e havia bastante barulho.

"Não perde o foco Alícia..." - Ela pensa, tentando afastar os pensamentos impulsivos. Alícia não precisava mais disso para viver, mas a emoção ainda existia.

Depois de alguns minutos pensando, ela decide procurar Olothar novamente. Era ele quem iria ajudá-la a chegar em Ildor. Além do mais, a conversa mais cedo não tinha terminado. Do mesmo jeito que subiu na sacada, Alícia desce. Ela faz o mesmo caminho que fizeram na carroça para voltar a taverna, assim não se perderia. Procura andar pela cidade de maneira a não ser notada e atenta. A capa com capuz estava mais fechada e cobria a maior parte de sua roupa "arrumadinha" e seu rosto. Haviam muitos malandros assaltantes na cidade e Alícia tenta evitar um encontro como esses.

Após decidir descer Alícia ouve a porta se abrindo, de onde está não consegue ver ninguém, e pouco mais de um minuto depois, ela percebe novamente a porta se abrir, os sons agitados da taverna e Akemi olhando e buscando algo, talvez a própria ladina.

Fica a escolha de Alícia, esconder-se da monja ou convidá-la para o passeio noturno.

A primeira reação de Alícia é esconder-se. Ela se abaixa e fica espiando do parapeito para ver quem saía. Ao ver que era Akemi, ela ainda fica alguns segundos escondida pensando o que fazer. Queria resolver aquilo sozinha, mas sentia-se incapaz de deixar Akemi sozinha procurando por ela. Ela suspira baixinho e fala com o gato:

- Viu, é assim, a gente se envolve, adia os planos...

Preguiçosamente ela desce, escorregando pela viga de sustentação da sacada (ou pela parede, enfim). Vai até Akemi pé por pé, querendo dar um sustinho na amiga.

- Procurando alguém, moça? - ela fala com um sorriso divertido.

O ar gelado a faz suspirar, depois de todo aquele fogo no salão da taverna, era bom estar em contato com o frio.
Queria esquecer o sorriso de Killua para Tari, queria esquecer que aquilo machucada.
Sente o cheiro dela antes de a ver, sua pequena menina, não sabia o que a levava a procurar e se preocupar com ela, era quase um instinto, de proteger e cuidar.
Virando com um sorriso no rosto, a envolve nos braços e beija sua testa, a apertando contra o corpo deixando que o calor se espalhe entre as duas.

-Procurava uma certa mocinha que saiu de fininho e sem a capa.
Está frio demais para ficar aqui sozinha, então eu vim dividir(tira um manto cinza de pele da manga e coloca sobre os ombros dela)
O que aconteceu para lhe chatear tanto Alicia?
Quem eu preciso socar para lhe trazer o sorriso de volta?

Ela ajusta a capa e espera uma resposta.

Alícia abraça Akemi forte e dá risadas.

- Ahh, sem graça, como foi que você me viu?? - Ela fala se aconchegando na capa de pele. Era definitivamente melhor e mais quente que sua capa velha. - Aliás, como é que você tira tanta coisa de dentro da sua roupa?? - Alícia pergunta, intrigada. Mas quando ela pergunta sobre o motivo que deixou Alícia chateada, a ladina fica vermelha de vergonha. Começa a enrolar uma mexa de cabelo no dedo e olhar pra baixo, tentando se explicar.

- Não... É que... Sabe...- Alícia tentava escolher as palavras, mas não era boa nisso. E por incrível que parecesse, também não era boa com mentiras de desculpas. Algo incomum para alguém de sua estirpe.  Depois de ficar enrolando ela desembucha:

- Ahhhh!!! É aquele Lorde!!! O Corvinus!! Eu vi que ele te chateou, e ele fica lá com aquele jeito, dando encima da Tahirir, acho que vi até ele dar uma olhada estranha para o Scorn!! Na sua frente, foi tão... Ah, indelicado? Descortês??? Sei lá... Aí depois ele ainda teve a petulância de me oferecer a mão pra descer de uma cadeira, como se eu fosse uma doente.

Alícia fica emburrada. Ela não sabia nem se explicar direito.

- Lordes tratam os outros como se pudessem chegar e fazer o que bem entendem! Não respeitam as garotas! Eram assim todos que frequentavam o Casarão da Mama Von Teese. E aí eu xinguei ele, você tinha subido essa hora, mas todo mundo viu e ficou chato. Eu não falei o motivo, eu só xinguei, não consegui segurar! E afinal o que ele quer aqui na taverna??? Por que não tá lá com os outros Lordinhos??? Eu tava agora mesmo indo lá no Seu Olothar fazer umas perguntinhas.

A sinceridade da menina a deixa sem palavras.
O que fizera para merecer tamanha lealdade?
Sabia que Lord Corvinus estava jogando, sabia que ele fazia o que tinha vontade sem se preocupar quais canelas ia acertar, ele Tari eram feitos da mesma cepa, predadores belos e mortais.
Só não esperava que Alicia fosse tomar suas dores, o carinho que já sentia pela menina aumentava vertiginosamente, seu povo era conhecido por serem trapaceiros e egoístas, mas o que nem todos sabiam era que a lealdade entre eles é uma virtude muito apreciada.
E Alicia acabará de conquistar a sua.
Com os olhos marejados fala:

-Não fazia ideia que isso a deixaria descontente, Lord Corvinus gosta de jogar com as pessoas, é um passa tempo de nobres, eles quase sempre conseguem o que desejam minha cara, ele fez aquilo que está acostumado, ser ele mesmo.
Eu que esqueci meu lugar e achei que era importante aos olhos dele.
Doeu, mas vai passar.

-Você não é doente, ele queria ser gentil, as vezes é difícil para eles(homens) ter mulheres capazes ao lado.
E se falou o que sentia está certa, nem todos gostam de ouvir algumas verdades.
Não sei bem o que ele faz ou como trata seu povo, mas agora ele sabe que tem uma mocinha corajosa que fala de igual para igual com ele.
Os nobres do lugar onde nasci são os piores e mais egoístas que conheço, tem poderes de vida e morte sobre seus súditos, podendo mandar matar uma família inteira só pelo prazer de exercer seu poder.
Ele deve ter algo para fazer na taverna, mas pelo que vi do seus acompanhantes eles parecem preferir a plebe do que os salões da nobreza.

-Fique chateada não, se me der um sorriso, te mostro o que tem nos meus bolsos!
Acho que o prefeito já deve ter ido para a cama, vamos fazer essas perguntas amanhã, depois de ir levar a carta ao seu Lord.

-Essa noite vou fazer uma vigília, aquela história do Jardim Vermelho me deixou com mau pressentimento, e vou precisar da sua ajuda.
Vou te mostrar meu melhor truque.

Akemi a segura pela mãos e aponta para o telhado, era um sutil convite para as duas saírem dali.

Alícia ouve Akemi falar concordando com a cabeça. Ela era realmente uma pessoa boa e sábia.

- Tá, tá bem... É que eu tô nervosa com essa histórias dos ataques. Tem uma pulga atrás da minha orelha, incomodando, sabe?? Tem algo errado.

Alícia pensava e refletia, talvez fosse melhor esperar até o dia seguinte mesmo. Quando Akemi aponta o telhado, os olhos dela brilham.

- Sério?? Jura??? Simm!

Alícia se empolga com a idéia. Uma vigília? Akemi lhe contaria um segredo??

Quando as duas se encaminhavam para cima do telhado antes que pudessem subir, percebem os sons da taverna aumentando novamente, um meio-elfo, o mesmo que conversava com o anão, saía com um embrulho pesado nas costas indo em direção a um dos cavalos por ali presos.

Por algum tempo ele conversa em élfico com o cavalo:

Élfico:

Da capa que servira de saco, ele retira um belíssimo escudo prateado que brilhava à Lua Cheia, cravejado de algumas gemas preciosas e com um desenho que de longe não era possível compreender direito, olha por alguns segundo e meneia positivamente a cabeça, voltando a guardá-lo e amarra-lo na sela do cavalo, subindo e partindo pela noite.

A taverna tinha cinco andares, o primeiro contava com o grande salão e a cozinha, o segundo, terceiro e quarto, era reservado para as acomodações, variavam de suntuosidade e formatos, mas vocês ainda não tinham tido tempo para se aperceber de suas diferenças, no quinto andar estava alojada os banheiros e chuveiros coletivos.

Ao redor de toda taverna, existiam varandas para alguns quartos ou janelões, pelo telhado era possível ter acesso a alguns.

Akemi parou para olhar o homem com o escudo, aquilo era interessante mas tinha outros objetivos para aquela noite.
Espera que ele saia e sobe no telhado, com Alicia logo atrás.
Procurando um ponto onde poderiam observar a rua abaixo, se senta ao lado da menina.
-Aqui é um bom lugar para vigiar, a história do massacre me deixou preocupada, sem contar as coisas que ouvimos hoje.
Vamos nos dividir, eu fico com a vigília aqui, E você desce e cuida da segurança dentro da taverna.
Quando amanhecer vou ao teu encontro no nosso quarto.
Não se assuste, mas não irei até você nessa forma.

Se afastando um pouco, fica de pé, um pequeno clarão e no lugar da monge, uma pequena e branca raposa encara Alicia.
Ela parecia dar de ombros e fala:

-Te prometi um segredo...
A raposa senta e espera que Alicia não surte.

Alícia torce o nariz quando Akemi diz para ela voltar a taverna. Estava frio? Sim. Estava cansada? Também. Mas perder a oportunidade de ficar no telhado acompanhada não a deixaria dormir direito.

- Olha, eu acho que aaaAAAAA... - Akemi havia se transformado, parando a reclamação de Alícia no meio, que começou a exclamar um grito de surpresa mas logo tapou a boca com as mãos, abafando a própria voz. Sente sua cabeça dar um nó, e quando a raposa fala, ela chega a se contorcer pra não gritar. Sacode as mãos, como quem tenta conter a excitação. Até que respira fundo.

- Nossa! Isso é incrível!! Que coisa fofa!! Você é uma druida?? - Alícia se aproxima para ver de perto. Parecia não ter compreendido ainda que aquela era a forma verdadeira de Akemi. Até então, achava que Akemi havia se transformado em raposa por alguma magia.

O gato se esfregava nas pernas de Alicia, fazendo pouco caso da bronca que levara, e a acompanhou, escalando casualmente até a sacada de onde a garota observava a cidade. Deitou esticado no corrimão da sacada, escondendo as patas dianteiras debaixo do corpo e ameaçou dormir, antes de abrir os olhos novamente, intrigado com o volume que o rato fazia enquanto se mexia sob as vestes da humana.

Deu um miado rouco e baixo, quando a porta se abriu e Akemi surgiu na noite. Soltou outro, claramente em protesto quando a garota deslizou novamente para a rua. Desceu junto e se manteve escondido atrás das pernas de Alicia, observando curiosamente.

Saltou para trás quando houve o clarão e surgiu uma raposa no lugar de Akemi. O gato arqueou as costas e eriçou os pelos. Soprou na direção do outro animal e novamente se escondeu atrás das pernas de Alicia, a cauda agitando nervosamente, seus olhos amarelos observando curiosamente.

- Não sou uma Druida, sou descendente de uma Kitsune e um humano, fui criada entre o povo de minha mãe, E depois levada contra minha vontade à viver entre os humanos.
Anos se passaram até eu conseguir fugir do monstro que me prendia.
Então vim para essa terra e vivo no Mosteiro.
Essa forma é um segredo, meu povo foi caçado quase até acabar.
Os pouco que sobraram estão escondidos pelo mundo.
Outra hora lhe conto toda a minha jornada até aqui.
Agora temos que nos concentrar na nossa vigília.
Sei que não gostou de te pedir descer, mas preciso de seus olhos atentos nos Dragões que estão no salão.
Se algo estiver errado, eles vão estar no cerne da confusão.
Assim que puder eu desço e vou para nosso quarto.
E Alicia, tente não ser presa.

Akemi olha o gato que se esconde nas pernas da menina, E mostra a língua para ele.
Mas não faz nenhum movimento para atiçar o mesmo.

Alícia estava agachada, ouvindo a raposa falar. Seus olhos brilhavam parecendo dois corações encantados. Ela se emociona com a história triste sobre seu povo. Como era possível caçarem tão bela criatura?

- Puxa, sinto muito pelo seu povo... Mas eu tenho sorte de ter conhecido você. Tymora deve estar olhando pra mim hoje. - Alícia continua ouvindo Akemi com uma cara de boba. - Mas e você vai ficar aqui sozinha? E se alguém te ver, esse pelinho branquinho, e se te levarem???

Alícia fica em pé olhando em volta, medindo mentalmente o quão perigoso aquilo poderia ser. Fica imaginando se na forma de raposa Akemi podia lutar igual como quando humana. A cena de uma raposinha lutando como monja a faz rir sozinha.

Do telhado, as duas começavam a ver as pessoas indo embora da taverna, a própria lua começava a ser encoberta com algumas nuvens, enquanto o frio aumentava. Nos quartos começava-se a ouvir movimento, as duas precisavam tomar cuidado ou seriam vistas em breve se não achassem um local para se esconder. Depois daquela história achar pessoas no telhado seria muito... delicado.

-Meu pelo pode ser um problema, mas não pretendo ficar exposta aqui em cima.
Você pode descer agora, a taverna está esvaziando.
Não seria uma boa idéia ser pega aqui no telhado.
Eu te encontro no quarto em algumas horas.

Akemi leva a menina até as janelas da sala de banho, era o melhor lugar para entrar de volta sem ser vista ou incomodada.

- Tá bom, mas cuidado então. Se alguém te pegar, eu juro que eu mato. E nunca matei ninguém, então faz favor aí de não ser pega.

Ela dá uma piscadinha para Akemi, a raposa, e desce pelo telhado indo até a janela. Chama o gato fazendo "bss bss vem catinho", mas ele não costumava ser muito obediente. Estaria aberta e desemperrada aquela janela? Esfrega o vidro para ver se não tem ninguém tomando banho. E reza para que seja o banheiro das meninas.

Estava realmente cansada, uma caminha não ia cair mal.

As crianças seguem seu rumo, e cada um acha teu lugar de refúgio para o mundo dos sonhos.

De trás de um beco, a figura do humano ruivo surge, vinda de algum lugar nas sombras. Olha na direção de uma das sacadas da taverna e boceja algo. Um miado rouco parece responder.

A noite havia sido menos produtiva que o esperado. Dá de ombros, assim era a vida. Enrolou a cauda invisível à cintura, abriu a porta da taverna e rastejou direto para seu quarto.

Na escuridão da noite, o gato se desfez em fumaça.